Histórias de Moradores de Suzano

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar o acervo de vídeos e histórias com depoimentos dos Moradores.


História do Morador de Suzano: Marcio dos Santos Salve
Local: Suzano - SP
Ano: 09/10/2012

Vídeo: Ademiro Alves de Souza (Sacolinha)


Sinopse:

Foi no trem que Ademiro aprendeu a amar a leitura, nas longas viagens entre o centro de São Paulo e sua casa, ele torcia para que o trem atrasasse para que assim ele terminasse sua leitura, sem falar na expectativa de encontrar algum amigo que o visse lendo. Conheça essa história.

História:

Sacolinha, como é conhecido o escritor Ademiro Alves de Souza, não era ainda um apaixonado pela leitura quando começou a trabalhar como cobrador de lotação. Para matar o tempo no caminho de casa para o trabalho, ele lia os livros que pegava emprestados do tio. Foi então que se tornou um leitor voraz, um processo essencial para que ele se tornasse escritor com dois livros já publicados: "Graduado em marginalidade" e "85 letras e um disparo".

P/1- Então, nós vamos começar nossa entrevista. Eu vou pedir pra você falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento. R- Meu nome é Ademiro Alves de Souza, nasci em São Paulo, tenho 24 anos de idade. Nasci no dia 9 de agosto de 1983.

P/1- E você tem um apelido, né? R- Meu apelido é Sacolinha. P/1- Por que “Sacolinha”? R- Sacolinha pelo seguinte: quando eu comecei a trabalhar como cobrador de ônibus em lotação, eu trabalhei 12 anos ali no metrô Itaquera, eu fazia a linha Cidade Tiradentes/Metrô Itaquera, e quando eu cheguei lá, eu percebi que era outro mundo ali naquele metrô Itaquera, porque até o seu apelido, se você tivesse um, quando você chegava lá eles mudavam, os cobradores e os motoristas. E aí quando eu cheguei no metrô Itaquera, havia um ambulantes que o apelido dele era Sacolinha, porque todas as vezes que as pessoas iam comprar salgado, pipoca e falavam; “Ah, eu preciso de uma sacolinha” e tal, ele nunca tinha, sempre pedia pro vizinho da direita ou da esquerda: “Ah, me arruma uma sacolinha que depois eu pago”. E ele nunca pagava. E aí os amigos deles resolveram apelidar ele de Sacolinha. E quando eu cheguei no metrô, eu não aguentei, comecei a tirar muito sarro, né? Como é que um ser humano pode ter o apelido de Sacolinha? Aí tirei sarro, tirei sarro, tirei sarro... E os cobradores ali do local, que já estavam tentando me apelidar há tempos alaram: “Quer saber de uma coisa? Já que você está tirando sarro do rapaz, vamos te apelidar de Sacolinha pra ver se você gosta”. Aí acabei não gostando, acabou pegando, ficou Sacolinha Velho, que era o que já tinha lá, e o Sacolinha Novo, que era eu, também até por conta da idade. E aí acabou pegando, eu não gostei, mas fui me adaptando, gostei e foi indo. Aí em 2002, quando eu virei escritor de fato, com livro publicado, eu resolvi usar com pseudônimo, porque eu falei assim: “Puxa vida, eu vou arrumar um pseudônimo literário”, e arrumei um. Aí, as pessoas me conheciam como Ademiro, me conheciam como Anthony, que era o meu, ainda com TH, que eu tinha escolhido, e como Sacolinha. Falei: “Nossa, mas tanto nome assim? Quer saber de uma coisa? Vai ficar como Sacolinha mesmo e pronto”. E aí ficou. P/1 – Essa época que você começou a trabalhar no metrô Itaquera, quantos anos você tinha mais ou menos? R- Eu tinha nove anos de idade. Nove anos de idade, eu ainda estava estudando ainda, morava ainda em Itaquera, porque a partir de 1998, com 14 anos de idade, eu passei a morar na cidade de Suzano com a minha avó, minha mãe morava ainda em Guaianazes nessa época, então desde que eu morava ali na cidade líder, ali ao redor de Itaquera, é que eu trabalhei como cobrador de lotação, até os 20 anos de idade.

P/1 – Então vamos voltar um pouquinho antes dos seus nove anos, bem na sua infância mais tenra. O nome dos seus pais, que que eles faziam? R – Eu só tenho o nome da minha mãe, pai não declarado. O nome da minha mãe é Maria Natalina Alves, ela é mineira, veio pra São Paulo, foi a primeira da família de fato a vir para São Paulo, aqui pra trabalhar como doméstica. E depois veio a minha avó, os meus outros tios... E aí foi vindo a família toda. Eu nasci em São Paulo mesmo, né, em 83, e... do um até os sete anos de idade eu fui criado com a minha mãe, ora com a minha mãe, ora com a minha avó. Eu não gostava muito de ficar com a minha mãe, porque a minha mãe ela sempre me prendia dentro de casa e, nossa, eu adorava a rua. Então, aos finais de semana, quando a minha mãe estava de folga, ela levava e me deixava na casa da minha avó, e minha avó, nossa, ela nem ligava. Me deixava na rua mesmo, brincando... E eu gostava muito de ficar na casa da minha avó. E nos domingos à noite, quando a minha mãe ia me buscar, às vezes ela tinha que me levar pra casa junto com a mesa da minha avó, porque eu agarrava e não queria voltar de jeito nenhum (risos). E aí quando eu tinha sete anos de idade, minha mãe trabalhava no Hospital Santa Marcelina como auxiliar de serviços gerais e aí não tinha como ela me levar pra escola, não tinha uma escola próxima aonde eu morava com ela, ela acabou me matriculando numa escola próxima à casa da minha avó, e aí dos sete anos de idade até os meus 20 anos, eu morei junto com a minha avó. P/1 – E assim, como era esse bairro da zoa Leste, você, era Itaquera mesmo ou Guaianazes? R – Cidade Líder, Itaquera. P/1 – É? Descreve pra gente. Era muito diferente do que é hoje, né?

R – Olha, eu trocaria tudo o que eu tenho hoje pra viver novamente essa minha infância na Cidade Líder, em Itaquera, porque lá foi um momento histórico da minha vida mesmo. Hoje eu me arrependo de ser adulto e, por mais que eu tenha livros publicados, que eu tenha uma vida hoje, que eu estou pra casar, por mais que eu tenha isso, eu trocaria tudo isso pela minha infância, porque foi uma infância de subir no pé de goiaba, de comer goiaba no pé, de chupar manga no pé com sal, sabe? Aquela coisa da infância mesmo. Chupar cana, descascar cana com o dente, você não machucar os dentes, nem nada, porque você era saudável, já estava imunizado disso na rua, jogar bola, todas essas brincadeiras. A gente não se preocupava em trabalhar, não se preocupava em ter dinheiro, uma vez ou outra a gente tinha que ter dinheiro pra comprar uma Tubaína, que a gente sentia muita vontade e tal. Mas assim, era um momento hiper bacana. Chegava nas sextas e nos sábados, que eram momentos de casamentos, de curso na igreja, a gente juntava aquela molecada, tirava no “dois ou um” pra ver quem ia ter a vaga pra olhar os carros ali pra ter dinheiro e comprar pudim na padaria do Seu Doca, que tinha ali na vila, ali. Era um momento hiper gostoso. A gente juntava uma molecada tudo... Quando a gente não comia pudim com o dinheiro que era arrecadado ali olhando carro, a gente ia numa pizzaria, comprava esfira, ia até uma ladeira que tinha ali na Cidade Líder, um ladeirão de paralelepípedo, e ficava ali comendo esfira, comendo pudim, conversando, e falando besteira, e falando das mulheres, e olhando revista de mulher pelada às escondidas, sabe? Era uma infância, assim, foi mágica. Não tem dinheiro, mas assim, foi uma infância muito criativa, tudo que a ente queria, a gente inventava, a gente produzia nós mesmos. E empinava muita pipa, jogava muita bolinha de gude, rodava muito pião. Foi uma infância que não deixou a dever nada pra ninguém, sabe? Então, hoje eu me arrependo de ser adulto. P/1 – Vocês faziam traquinagens, assim, tem alguma boa história? R – Nossa, tenho bastante.

P/1 – Pode contar? R – Tinha algumas de muito mal gosto, que inclusive eu estou escrevendo um, aliás, já terminei um livro que provavelmente será editado em 2009, final de 2009, intitulado “Peripécias de minha infância”. É um livro narrado em primeira pessoa, só que é um livro ficção e realidade, né, e o personagem principal é o Artur, baseado um pouco na minha vida, e tinha algumas brincadeiras de muito mal gosto, como, por exemplo, nessa ladeira que a gente se reunia à noite pra comer pudim e pra comer esfira, a gente costumava jogar pneus lá de cima, né? E muitas vezes, também, a gente amarrava num fio, a gente amarrava um cordão e ia pro meio do mato que havia do lado do ladeirão, um matagal. E no meio desse fio a gente amarrava, no meio desse cordão a gente amarrava um sapato. Muitas vezes quando estava vindo um colega nosso, a gente descarregava esse cordão, e o sapato ia na cara desses nossos amigos. Essas são algumas brincadeiras de mal gosto, mas tinham outras brincadeiras muito bacanas também, principalmente em época de aniversário dos nossos amigos. Toda vez que chegava o aniversário de um amigo nosso, ele ficava uma semana, a semana do aniversário inteirinha sem sair pra rua, porque a gente sempre dava um jeito de fazer com que ele saísse pra rua. E que que a gente fazia? A gente pegava um ovo, uma semana antes do aniversário do colega, enterrava esse ovo, comprava farinha de trigo, tudo que era possível pra sujar o rapaz, a gente fazia. E no dia do aniversário, a gente dava algum jeito dele sair pra rua e aí depois tacava o ovo podre na cabeça dele, a farinha de trigo, e jogava pena de galinha... Um monte de coisa. Ele ficava mais ou menos um mês tentando tirar o cheiro podre do cabelo dele. Aí então a gente brincava muito com... Era uma infância muito gostosa, muito saudável mesmo, tirando alguma brincadeira de mal gosto, é claro (risos).

P/1 – Mas enterrava pra apodrecer o ovo? R – Enterrava pra apodrecer... P/1 – Onde vocês faziam isso? Num terreno? R - ... três dias... Num matagal mesmo. O matagal que tinha lá era o nosso quintal, nosso Playcenter, né? Então, a gente colocava fogo lá, fazia uma fogueira, assava batata roubada do quintal do vizinho, chupava cana ali, soltava balão com o ar da fogueira. A gente amarrava uma linha no balão e deixava ele encher com o vapor da fogueira. E aí quando ele enchia, a gente soltava, a gente ia descarregando a linha e ele ia subindo. Aí o pessoal da Rua Sete descia tudo, achando que era um balão que tava caindo, né? Aí, quando o balão tava caindo, a gente puxava a linha e ficava chamando eles, xingando eles de tudo quanto é coisa (risos).

P/1 – Quem que fazia parte dessa sua turminha? Você lembra dos nomes dos colegas? R – Olha, são só apelidos, por incrível que pareça, e são todos apelidos estranhos: Casquinha; Zoião e Zóinho, esses dois eram irmãos, cariocas, inclusive, que trouxeram muitas ideias. Inclusive quando a gente foi roubar cana no quintal do Seu Benjamim, tinha dois cachorros grandes lá. E aí o Zóinho e o Zoião, que eram irmãos que vieram do Rio de Janeiro, trouxeram algumas ideias. Uma dessas ideias era de como atrair um cachorro sem gastar muito. E a gente tinha um amigo na turma que era bem de vida, toda hora que a gente precisava de alguma coisa, que precisava de dinheiro, ele: “Não, não, na minha casa tem...” A gente chamava ele de Sou Rico, né? “Oh, Sou Rico...” Ele não gostava. E aí, esses irmãos, o Zóinho e o Zoião, eles trouxeram uma idéia de assim, pega um bife, né, tempera bem, coloca dentro de uma sacola e passa um pouco do sebo do bife em volta da sacola, né, e joga pro cachorro. O cachorro, ao invés de ele morder a sacola pra tentar tirar o bife, ele só vai ficar lambendo só, porque ele vai achar que aquilo ali é como se fosse aqueles ossos de borracha, não tem como você engolir, não tem como mastigar. Então, de fato deu certo, a gente pegou muita cana assim, a gente sempre jogava o Sucrilhos, o Sucrilhos era um rapaz da nossa turma muito magrelo e ele recebeu esse apelido porque toda vez que passava aquele comercial do Sucrilhos Kellogs, aquele cereal, ele falava assim: “O seu filho ta magrinho? Dê Sucrilhos Kellogs para ele”. Aí a gente resolveu apelidar ele de Sucrilhos. E aí a gete sempre jogava ele, porque ele era magrinho e era fácil de passar entre o arame farpado, ali no vão. Então ele ia lá, corria, às vezes ele tinha medo, a gente empurrava ele, ia lá, quebrava as canas, voltava, enquanto os cachorros do Seu Benjamim estavam lambendo a sacola (risos). Pois é, e a gente ria demais.

P/2 – Qual que era o seu apelido? R – Era... Eu tinha dois: os que me respeitavam me chamavam de Mirão, que é Ademiro, é o Miro, Mirão; os que não gostavam muito de me respeitar, me chamavam de Domingão. Por que Domingão? Porque tinha um personagem muito interessante ali na Cidade Líder, em Itaquera, era um rapaz que parece que teve uns problemas psicológicos, foi preso, apanhou da polícia, segundo o que algumas pessoas falam, e ele saía às vezes batendo de porta em porta pedindo cueca. E ele falava, às vezes, um linguajar que a gente não entendia. Ele falava assim: “Burigá, burigá. Tem cueca pra me dá? Cueca pra me dá?” E saía, tal. E quando as pessoas mexiam com ele, ele corria atrás pra bater, com pedaço de pau, com pedra e tal. E aí, como ele era negro e um pouco parecido comigo, o pessoal me xingava de Domingão, o apelido dele era Domingão. Então falavam assim “Oh, Domingão”, e eu não gostava. Aí já viu, né? Não gostou, pegava. Então, eu tinha dois apelidos (risos). As pessoas, quando queriam alguma coisa minha, que eu ajudasse, falavam: “Oh, Mirão”. Agora, quando queriam tirar sarro: “Domingão, Domingão...” Eu não gostava, saía correndo e tal. E aí acabava __________, porque o Domingão saía correndo atrás do pessoal, né, pra ficar, pra tirar um sarro, pra bater neles e tal. E Domingão porque ele só era visto aos domingos na rua, né, correndo, ele tinha um gingado meio estranho, né, e ficava batendo na porta dos outros pedindo cueca.

P/1 – Vocês tinha medo dele? R – Bastante. A gente tinha medo, mas a gente tirava muito sarro dele. A gente corria atrás dele e, às vezes ele passava em silêncio na rua, a gente falava: “Nossa, mas que estranho”, né, pra gente tinha alguma coisa errada. A gente começava a correr atrás dele e xingar: “Oh, Domingão... “, puxava a calça dele e tal. E ele vinha atrás a gente. Aí que era bom, né? Porque era a nossa arte. Corria, corria, e dava risada. Tinha muitos momentos que ele pegava algum de nós lá e sentava o reio. P/1 – Agora, Sacolinha, nessa época na Cidade Líder, Itaquera, parecia um bairro de interior? Tinha muito carro, muito prédio? Como que era isso? R – Não, não tinha nem muito carro, nem muita bicicleta, também não tinha muito prédio, não. Acho que até por isso que era uma infância, quando eu falo que eu daria tudo, é pra viver essa infância, não voltar a ser criança nos dias de hoje, de forma nenhuma. Hoje ta tudo mudado, né, a globalização chegou em tudo quanto é lugar, inclusive na zona rural. E se Cidade Líder, que não é zona rural, acaba chegando também, né, carros é o que mais tem hoje em dia, bicicletas também não tem muita coisa lá. Na época, era uma vez ou outra que tinha carro passando, tanto que a rua não era rua de lazer, foi justamente nessa época, em 92 a 95, que surgiu a lei das ruas de lazer, que eram fechadas aos sábados e domingos, né? E a nossa rua não era rua de lazer, pelo contrário, a rua de cima não tinha tanta movimentação, que era a Rua Sete, era uma rua de lazer, né? Mas a nossa rua, mesmo não sendo rua de lazer, a gente armava redes de vôlei, jogava futebol. Uma vez ou outra ali, acho que de 40 minutos, ali passava um carro, né? Que às vezes as pessoas usavam a Avenida Líder, que era a avenida principal, pra ir pros outros bairros e o nosso, uma vez ou outra, passava algum carro. Então era muito bacana, tal. Hoje é difícil, hoje muitas vezes quando eu volto pra Cidade Líder, até parece que a rua encolheu, né, eu lembro quando a gente estava aqui no ladeirão e estava aqui do outro lado da rua, nossa, quando tinha que atingir o outro lado demorava uma eternidade, uns dez minutos pra chegar lá. Hoje não, hoje em dois, três minutos parece que a rua encolheu, né? Mas eu acho que é mais o nosso dia-a-dia hoje, a gente vive tão “tem que produzir, tem que correr”, sempre mais, não importa como, então, parece que a rua também encolheu. Os moradores são outros também, está muito diferente.

P/1 – E me fala uma coisa, quando você começou, assim, a estudar mais formalmente? R – Olha, eu saí da escola de fato sem gostar de ler e sem gostar de escrever, então, o que pra mim é um fenômeno. Eu parei de estudar com 18 anos de idade, aí já estava morando na cidade de Suzano, e com 18 anos de idade mesmo que eu comecei a ler bastante, e aí depois que eu comecei a escrever, porque era muita coisa na minha cabeça, então eu tinha que colocar no papel de alguma forma. Foi aí que eu comecei a dar mais atenção pro estudo. Foi aí que eu me arrependi em ter ido pra escola só pra não virar lixeiro, porque minha avó vivia falando “Olha, se você não estudar, você vai virar lixeiro”. Então, eu ia pra escola pra não virar lixeiro, pra não virar catador no ferro velho. Então foi aí que eu comecei de fato a dar atenção pro estudo, que eu comecei a fazer alguns cursinhos de informática, de inglês, e aí, em 2005, em 2006, eu entrei na Universidade de Letras. P/1 – Mas, assim, quanto você começou, você tinha o que? Sete, oito anos? R – Quando eu comecei a estudar na escola eu tinha sete anos...

P/1 – Você detestava? R- ...Ah, eu ia mesmo porque... Primeiro motivo de eu ir pra escola era porque eu tinha um tio, hoje ele é padre, ele vivia dizendo pra mim que se eu não estudasse, e que se eu bagunçasse, ele ia me mandar de volta pra casa da minha mãe. E tudo que eu menos queria nessa época era voltar pra casa da minha mar, porque ela ia me trancar dentro de casa, né? Então, eu ia pra escola pra isso. Aí, a partir do momento, da quarta, quinta série, eu comecei a ir porque eu não queria virar lixeiro, porque eu não queria ser catador de lixo. E porque toda a vez que a gente não faltava, que a gente ia direto na escola, a gente ganhava um monte de brindes, ganhava caixinha de lápis de cor, e minha avó, minha família na tinha condições de comprar. Isso pra mim era o paraíso, né? Ao invés de minha avó, minha mãe, aproveitar: “No fim do ano você vai ganhar um vídeo game se você for aprovado”, não, pelo contrário, elas não falavam isso. Então a gente não tinha um certo incentivo material, né, então, quem não faltasse nessa época na escola, ganhava lápis de cor, ganhava giz de cera, ganhava... Então eu ia muito, dificilmente eu faltava. Então eu fui, da minha primeira série do primeiro grau, até o terceiro colegial, eu dificilmente faltava e não fui reprovado em nenhuma matéria, não existia ainda essa lei da aprovação automática, né? Então, assim, confesso que eu fui um bom aluno, mesmo sem querer ser (risos). P/1 – E sempre na mesma escola que você estudou? R – Até a oitava série do ensino médio... P/1 – Qual escola?

R – Na escola Oswaldo de Oliveira Lima, em Itaquera. E aí do meio da oitava série até o terceiro colegial na escola... Eu falei Oswaldo de Oliveira Lima, né? Não, então era na primeira escola era Luzia Queirós de Oliveira, que foi em Itaquera. E a segunda, que foi da oitava em diante foi Oswaldo de Oliveira Lima, em Suzano, no Jardim Revista, que é o bairro onde eu moro. P/1 – E da convivência, assim, com a sua avó, quais foram os ensinamentos que ela te passou, os costumes da família...? Que que ela...? R – Olha, acho que é melhor coisa que minha avó fez foi deixar eu livre na rua, viu? Porque foi a rua que me ensinou muita coisa, foi a rua que me ensinou a ser o que eu sou hoje. Tudo que eu faço hoje, eu devo à rua. Mas não que a minha avó me deixava na rua largado. Não, de forma alguma, era oito, nove horas, ela me procurava na rua, tanto que quando a gente ia ficar em volta da fogueira às dez horas da noite, é porque eu fugia da casa da minha avó mesmo, né? Mas ela, por me deixar mesmo jogar bola, rodar pião, empinar pipa e tal, acho que foi o maior ensinamento que ela deu pra mim foi isso. E eu com 12 anos de idade ela falou assim: “Você vai pro Parque Dom Pedro sozinho, vai fazer suas compras, vai se virar, porque senão você vai fazer 18 aos e vai parecer um rapaz bobo, sem saber nem pegar um ônibus, né?” Então a gente costuma que na rua tem um pouco dessa ginga, a gente precisa dessa imunização, né? Então, acho que esse foi o maior ensinamento pra mim foi isso.

P/1 – Você começou a andar por São Paulo sozinho? R – Comecei. Com 12 anos de idade. Como eu já trabalhava como cobrador de lotação, então eu tinha algumas ideias e tal. E eu lembro que lá pra 94, 95, quando chegou aí o Plano Real, a gente juntava eu e a molecada da rua e ia tudo lá pra Galeria do Rock, Galeria Pajé, comprar aquelas roupas e tal, aquelas bermudas, porque era mais barato. E porque era legal chegar no bairro com uma bermuda nova, tal. Então, os primeiros lugares que eu fui, foi ali no Parque Dom Pedro, a subida da General Carneiro, Francisco Glicério, tudo... esses locais assim. P/1 – Como vocês ouviram falar da Galeria do Rock? R – Ah, chegou um momento ali, em 1994, que na Cidade Líder, Itaquera, que era uma febre, né? Você falar que foi na Galeria do Rock era um status, né? “Esse fim de semana foi eu e o Sucrilhos na Galeria do Rock”, tal, os caras ficavam com inveja. “Oh, legal.” Você pegava um ônibus, às vezes andava por trás, outras vezes a gente economizava o dinheiro da passagem pra comprar alguma coisa lá e tal. E aí chegava no local, paquerava as menininhas, comprava uma bermuda, e ficava olhando, tal. Andar no centro de São Paulo também era um passeio fantástico. E aí quando a gente voltava, era tudo de bom, né? Voltava à tarde pra rua e: “Tava na Galeria do Rock”, tal, então era um falatório geral. E aí quem ia era um status. P/1 – Qe que você achava do centro da cidade de São Paulo?

R – Ah, eu sempre fiquei fascinado por tudo, inclusive à noite, as luzes iluminando, tudo mais. Acho também que chama muito as crianças, né, o centro de São Paulo, tudo mais. Mas é, tudo isso me fascina, pessoas, calor humano, sabe, as pessoas passando por você, aquela variedade de coisas, guardas, ambulantes correndo da fiscalização, tudo isso me fascinava. Coisa que não acontecia no meu bairro, lá acontecia. Mas eu também tinha muito medo do centro, quando eu via a criançada na rua, pessoal que tava em situação de rua, né, algumas cenas que apareciam nos jornais, de policiais espancando, crianças aparecendo mortas e tal. Ao mesmo tempo que me fascinava, o centro, eu também tinha muito medo, né? Então, eu voltava pra casa cedo, pra não ter problema. P/1 – À noite lá nem pensar? R – Não, nem pensar.

Eu já tive vontade de passar a noite no centro de São Paulo, mas foi depois que eu virei escritor, que aí eu comecei a pesquisar muitas coisas, então eu tive vontade de saber como é que era e tal, mas com muita calma... Ainda não fiz isso. P/1 – Já com outra curiosidade. R – Outra curiosidade. P/2 – E quando você trabalhava, na sua infância, o que que você fazia com esse dinheiro? Quanto que era o dinheiro que você ganhava? Como que era essa sua relação, assim, com o trabalho e com o dinheiro? R – Eu sempre fui muito organizado. Eu sou hoje um rapaz que acorda, né, antes de dormir, aliás, deixa a roupa toda arrumadinha ali, e quando acorda deixa a cama arrumada, então sempre fui muito organizado. E lá na minha família, em Itaquera, a família da minha avó tinha uma tradição que tinha uma mulher lá que todos os dias a gente ia ao supermercado, né, que a gente falava assim: “Ir à venda”, né?

A gente ia ao supermercado pra ela. Então, primeiro ia o meu tio, esse que hoje é padre, que é o padre Arlindo, depois começou a ir o meu outro tio, que é o Luciano, e aí, depois do Luciano, passou a ir eu ao supermercado para essa mulher. E essa mulher sempre dava uma gorjeta pra gente, uma gorjeta boa até na época, tinha até umas outras vizinhas que mandavam a gente ir e falava: “Ah, depois a gente te dá um trocado” e nunca dava esse trocado. Então essa mulher, ela sempre dava uma gorjeta legal pra gente. E eu sempre costumava guardar. Se eu ganhava, vamos supor que é nos dias de hoje, se eu ganhava dois reais, eu guardava um e cinqüenta e cinqüenta centavos eu gastava no fliperama, né, jogando vídeo game, tal. E quando eu não jogava vídeo game, eu comprava doce. Mas esse um e cinqüenta que eu ia guardando por dia, eu ia comprando as minhas coisas. Então, a partir dos nove, dez anos de idade, eu costumava comprar meus doces, minhas roupas, eu costumava dizer que a minha própria cueca eu comprava com o meu dinheiro, né? Então, por ser muito organizado com essa grana, quando eu não gastava com besteira, que era doce e vídeo game, eu sempre comprava minhas roupas aqui.

Se sentia vontade de andar de skate, começava a comprar as minhas peças, minha bicicleta, sabe? Então ia juntando o meu dinheiro e gastava com coisas úteis também, pra até não ter aquela sensação de estar pensando, falar: “Nossa, ganhei dinheiro e estou gastando tudo com besteira”, né, porque eu sempre tive medo de pecado. P/1 – É? Mas é assim, uma prática religiosa? R – Não, não. Mas assim, eu me sinto culpado às vezes em gastar todo dinheiro com uma coisa que não vai ser útil pra mim. Depois eu fico me cobrando: “Poxa vida, poderia ter gastado com uma outra coisa que seria melhor, que seria útil pra mim e pros meus familiares e amigos”. Então isso sempre veio na minha cabeça, tal: “Estou fazendo a coisa errada”. Se eu ganhasse esses dois reais e gastasse tudo com fliperama ou com doce, eu falaria: “Puxa vida, e agora, né? Estou gastando com doce, estou estragando meus dentes, estou estragando meu estômago, e não...” Então eu ficava sempre com essa sensação de culpa, assim. Então, eu sempre pra não ficar com essa sensação de culpa, então eu pecava, mas ao mesmo tempo eu pagava esses pecados guardando um real e cinqüenta ali, pra comprar as minhas roupas, pra comprar alguma coisa que seria útil pra mim, né? P/1 – Mas Sacola, você freqüentava Igreja, essas coisas?

Porque essa idéia de pecado é bem católica, né? Você freqüentava a Igreja? Tinha algum ensinamento religioso? R – Olha, só quando eu queria pagar os meus pecados mesmo (risos). Tanto que eu passei a ir pra Igreja todos os domingos, né? Então, assim, eu vi uma vez um padre, padre não, o ministro da Igreja dizendo que, poxa vida, Deus dá todo o tempo do mundo pra você e você não tem nenhum tempo pra ele. E aí isso ficou latejando na minha cabeça: “É verdade, eu preciso ter um tempo pra Deus”, né? E aí foi quando eu passei a ir pra Igreja aos domingos. Então todos os domingos eu ia pra missa das oito ou nove horas da manhã. E aí sempre ia e fiava assim, como eu sempre chegava tarde, então era melhor pra mim, porque eu ficava na porta, a Igreja lotava e eu ficava sempre na porta. Ora eu olhava lá pra Igreja e ora eu olhava pra trás, pra rua, se o molecada já estava jogando bolinha ou empinando pipa, né (risos)?

E aí, tinha domingo que eu acordava tarde, tinha domingo que às vezes eu acordava, eu escondia o meu caderno da catequese e falava que tinha perdido, aí o meu tio falava assim: “Poxa vida, eu te matriculei lá, consegui uma vaga pra você e agora você não vai pra catequese?” E aí, ora eu falava que estava com dor de barriga, ora eu escondia o caderninho e falava que tinha perdido, tal. Então eu sempre vivia adiando, né, mas sempre com aquela idéia na cabeça: “Olha, Deus vai me castigar, eu podia ter ido pra Igreja hoje”. E quando eu conseguia ir à Igreja e ficar até o final da missa, aí eu ficava ais feliz: “Poxa vida, legal, agora eu vou empinar pipa, vou pecar, fazer de tudo, porque eu já dei meu tempo pra Deus. Agora o tempo é meu”, tal. Mas hoje em dia, a literatura, a arte, no fim ela acabou mostrando pra mim que eu posso adorar o meu Deus, eu posso ter tempo pro meu Deus de outras formas, sem precisar ir em nenhuma Igreja, sem precisar praticar nenhuma religião também, né?

Então hoje eu sou católico mais por herança, porque toda a minha família é católica, por ter um tio padre também, mas eu acabo não praticando e eu não sinto culpa por isso. P/1 – Qual era o nome dessa Igreja que você freqüentava nessa época? R – Era Sagrado Coração. Inclusive tem uma em Suzano também, por incrível que pareça, que é atrás da casa da minha avó, hoje eu não moro mais com a minha avó, eu moro com a minha mãe em Suzano, mas é um pouco de coincidência porque ficava na mesma rua em Itaquera, essa Igreja do Sagrado Coração, então era uma comunidade, porque ali tinha a Igreja, tinha o “ozenho” (?), né, que hoje em dia a gente chama de EJA, de Projeto Jovem, tal, mas existia na época o “ozenho”(?), que trabalhava com jovens e pessoas idosas que não tiveram oportunidade pra estudar. Então, tinha o “ozenho”(?), tinha ali um espaço onde se fazia quermesse, onde se fazia festa junina, então era uma comunidade do Sagrado Coração de Jesus.

A Igreja que tem hoje atrás da casa da minha avó, lá em Suzano, no Jardim Revista, chama-se Sagrado Coração de Jesus, mas não é uma comunidade, é só uma Igreja também. P/1 – Sacolinha, a gente está falando de uma infância e de uma adolescência que é muito recente, você e muito novo, né? Mas, assim, pra gente estar caracterizando esse período, conta assim, como vocês se vestiam nessa década de 90, que você já começava a sair pra rua, tudo. Como que eram as roupas, as gírias, como era essa vida de moçada? R – Olha, era uma época que surgiu a bermuda calça, que é aqui no joelho, tinha um zíper, aí quando estava meio calor, ou você queria fazer alguma média pra algum colega, ou pra alguma garota, você tirava ali o zíper e ficava só com a bermuda, tinha uns bolsos largos, grandões, que aí a gente enchia a carteira de papel, pra ficar bem gorda, assim, pra dizer que a gente tinha dinheiro, e colocava, tal. E era uma época que a gente ou usava uma camisa de time ou usava a camisa de um grupo musical preferido. E eu usava, como eu ainda não curtia muito música, eu usava a camisa do Corinthians, né, mesmo sem muita vontade de torcer, aquela coisa de fanatismo, mas usava a camisa do Corinthians.

Então era assim, se você era bem quisto ali na roda se você usasse alguma camisa de algum time ou de algum grupo preferido, né? Mas a gente tinha grandes problemas, foi justamente nessa época que tava aflorando muito essas brigas de punks, clubbers, skatistas, e nessa época eu andava de skate também, então eu tinha muito medo de usar certos tipos de roupa, né? Se você usava uma camisa dos Racionais, que é m grupo de rap, você tinha problema de encontrar num shopping Aricanduva, que era onde a gente mais freqüentava, os clubbers, os carecas, e eles eram contra tudo isso, né, então a ideologia, tal... P/1 – Então eles partiam pra cima? R – Ah, partiam, bastante, tinha muita briga. Eu mesmo já cheguei a correr muito, graças a Deus nunca apanhei, até porque sempre fui medroso, nunca gostei de me envolver em briga, então quando eu via que o bicho ia pegar pra mim, eu corria e não queria saber de nada, né? Então o meu negócio era só curtir, andar de skate, ser criativo, brincar, mas briga não era comigo não. P/1 – E as gírias?

R – Olha, nessa época, por incrível que pareça não tinha muita gíria, não. Tinha bastante apelidos, viu, essa questão dos apelidos, surgia um apelido que você não gostasse, pegava na hora. E aí depois tinha que se acostumar, porque de qualquer forma acabava surgindo. Agora, gírias mesmo eram poucas, tinha no skate uma gíria que a gente tirava bastante sarro, que era chupar mangueta Fulano estava andando de skante, tomava um tombo, a gente falava assim: “Chupou uma mangueta”. Então era bem poucas as gírias. O bom mesmo da época eram os apelidos. “Não gostou de um apelido, toma pra você”. Era Casquinha, Sucrilhos, Cueca, Cueca era um rapaz que ele usava as calças do avô, as calças e as cuecas do avô, né, porque muitas vezes quando a gente brincava e tal, a gente tirava a camisa e jogava no fio de eletricidade pro rapaz tentar tirar depois e não conseguir, e aí uma vez a gente encontrou esse amigo nosso, o Gilberto, tiramos a camisa dele e a cueca dele tava bem aqui em cima, uma cueca toda frouxa e a gente resolveu apelidar ele de Cueca, porque a gente falava que ele usava a cueca do avô. Falava: “E aí, Cueca?”, tal. Então pegou muito a questão dos apelidos. Gírias eram pouca coisa mesmo.

P/1 – E Sacolinha, as paqueras, namoro, primeiros namoros... R – Olha, eu namorava muitas meninas na escola, mas elas não sabiam que eu namorava elas, porque eu olhava, assim, ficava paquerando e falava assim: “Nossa, que legal, que bacana, né, moça bonita, tal, vou namorar com essa daí”. Então, às vezes, quando eu conseguia dar um beijo na bochecha de cumprimento, eu já ficava todo contente, todo feliz, pra mim eu tinha ganhado o dia, tal. Mas de fato, passei a namorar, passei a levar mais a sério mesmo com 14 anos de idade, porque na escola eu sofri muito com a questão do preconceito, né, preconceito racial. Tanto que eu sempre gostei de dançar, e na escola Luzia Queirós de Oliveira a gente tinha, toda época, era verão, era festa junina, primavera, a gente sempre tinha danças, a gente tinha uma professora, chamada professora Marli, que era uma professora de Educação Física que coordenava as danças, né, então a gente se apresentava, abria a escola pra comunidade, vinha o pessoal ver a gente dançar. Então tinha sempre essa época de dança. Eu sempre adorava danças, era tudo, festa junina: “Procura o Ademir, procura o Miro que o Miro gosta de dançar”.

E aí, sempre quando tinha danças que você tinha que formar par, as professoras falavam: “Formem os seus pares”, eu sempre ficava por último, porque eu nunca queria chegar naquela moça bonitinha da sala, aquela moça branca e tal, porque eu tinha medo de ser rejeitado, como muitas vezes eu era rejeitado e tal. Foi uma coisa que a literatura me ajudou muito, foi em superar esse preconceito e a exigir os meus direitos também. Então, de fato, eu comecei a namorar, a dar o primeiro beijo, com 14 anos de idade, foi aí quando surgiu. E aí, nessa época, quando chegava, por exemplo, nos ensaios de escola de samba, primeira da Cidade Líder, a gente conhecia, a gente tinha mania de conhecer as mulheres, né? Então, quando a gente conhecia, era cumprimento, três beijinhos. Então, a gente cumprimentava, dava três beijinhos e saía todo contente, que pra gente aquilo ali, nossa... Aí chegava em casa: “Onde você estava?” “Ah, estava namorando.” Aí, a avó olhava assim e dizia: “Quem vê pensa” (risos). Pois é. P/2 – E a primeira namorada mesmo? O primeiro beijo, assim?

R – Olha, a primeira namorada mesmo que eu tive, que eu posso considerar, é a minha atual, que eu sou noivo, que é a Irlândia, ela mora em Barueri, olha a diferença, Barueri e Suzano, zona oeste e região do Alto Tietê. Mas antes eu nunca tive alguém de namorar por mais de três meses, era mais aquela coisa de ficar, ficar... “Vamos ficar.” “Estou ficando com fulana...” “Estou ficando com siclana.” Mas o meu ruim é que eu sempre fui um sujeito muito sensível, então eu me apegava muito, que esse problema de ficar me prejudicou, eu ficava e quando estava começando a gostar, e aí a moda do momento era que você só podia ficar, você não podia namorar e tal. E aí eu ficava meio assim de pedir pra namorar e tal, e aí acabava sofrendo, até que arrumava outra e assim ia. A gente acabava ficando, ficando, ficando, que era a onda do momento... P/1 – Mas, assim, conta um pouco de quando você conheceu a Irlândia, como que foi isso? Namoro que é noivado, que vai virar casamento... R - Isso, isso, daqui um ano, mais ou menos, em julho de 2009 a gente está casando. Conheci ela num show de rap, chamado Rap’ n Festa, que acontece todos os anos, e em 2002, eu a conheci em São Mateus, a gente estava tendo esse movimento de hip hop, tava tendo um show do “Goc”(?), que é um rapper de Brasília, um rapper super politizado.

E aí, nesse Rap’ n Festa, que era um movimento bem organizado, antes de acontecer, tinha um preparo, umas oficinas, preparo de voz dos rappers, tinha exposição de fanzines, que é aquela revista artesanal, que surgiu na década de 60, 70, que os grupos, que os fãs, os fã-clubes da periferia, que curtiam os grupos de rock faziam, né, faziam em homenagem aos seus grupos, colocavam ali, punham folha de sulfite, dobrava, e ficavam quatro páginas, né, ficava a capa e tal, totalmente artesanal. Então ela fazia voltado isso pro hip hop, né, a Landi fazia isso. E aí ela foi nesse encontro de hip hop que ia ter encontro de fanzines também e eu fui lá pra participar de uma apresentação musical de um grupo de Suzano, formado por duas mulheres, que é a Valéria Dídia e a Alessandra Félix, que tinha um grupo chamado Denúncia Verbal.

E na época me chamou pra fazer uma participação, né, uma breve fala no grupo e eu falei: “Vamos lá”, elas se apresentaram nesse movimento, e quando chegou lá, a Valéria Dídia, que hoje é professora, me apresentou pra Landi, né, que elas faziam contato por cartas de fanzine, tudo mais: “Oh, esse aqui é o Sacolinha”, eu até lembro quando ela me apresentou, ela falou assim: “Quem?” Aí a Valéria falou assim: “O Sacolinha”. “Ah, Sacolinha.” A gente se cumprimentou, tal, os três beijinhos, tudo mais e aí continuou rolando a festa, a gente se apresentou, a Landi estava fazendo as suas articulações ali, entregando fanzine. Na hora de ir embora, já era mais ou menos nove horas, ela estava indo embora porque ela estava em São Mateus, né, zona leste, e ela precisava ir pra zona oeste, Barueri. E aí como eu trabalhava como cobrador de lotação de toda aquela área, Itaquera, Iguatemi, Cidade Tiradentes, a Valéria veio perguntar pra mim, falou: “Sacolinha, a Landi precisa ir embora, só que ela precisa pegar um ônibus prum metrô ou pra uma estação mais próxima de trem aqui”.

E mesmo sem eu conhecer, eu vou aproveitar a oportunidade, eu falei assim: “Vamos lá”. Aí fomos pro lado de fora, a Valéria estava indo com o namorado dela até um ponto, porque ele precisava trabalhar, pra pegar o ônibus pra ir embora também e eu ia levar ela para um ponto também. Comecei a seguir a Valéria, né, e o namorado dela falou assim: “Não, mas espera aí, o local que eu vou pegar ônibus não passa ônibus pra algum metrô, pra alguma estação, né?” Aí eu falei: “Ah, é verdade, é verdade... É que eu vou pro outro ponto”, tal, mas nem eu sabia que ponto que eu ia. E a Landi não sabia disso. A gente foi pro outro ponto e eu vi que estava passando alguns ônibus e tal, falei: “Ah, acho que aqui passa”. E aí a gente começou a conversar e toda hora que apontava um ônibus, como ela usava óculos e eu não enxergava muito de longe, a gente achava que era o ônibus dela, né, e ia dar um abraço: “Olha, tchau, vamos trocar contato...” Aquela coisa gostosa, tal, de beijar e tal. E aí, até que passou meia hora, passou o ônibus dela, ela foi embora, passou uma semana ela me ligou, falou: “Olha, vamos trocar cartas”, que era um grande momento dessa época, 2001, 2002, era de trocar cartas, né, a gente nem tinha muito contato pela internet, a gente não tinha esse acesso.

E aí ela ficou de me mandar uma carta, ela me mandou a primeira carta, já mandei a segunda, terceira. E ela já namorava e, na época, eu também namorava. E aí ela tinha terminado com o namorado dela, voltou de novo, e eu continuando com o meu namoro. Aí até que chegou um certo momento de tanto jogar indireta, mandar carta e jogar indireta pra ela, eu fui e me declarei. E ela tinha terminado já com o namorado dela e tudo mais, aí só eu que não. Aí quando ela disse “sim”, ela falou: “Olha, legal, beleza. Mas e a sua namorada?” “A gente está terminando agora.” Até porque não estava muito legal, não estava rolando bem e a gente começou a namorar. O primeiro encontro que a gente teve foi no dia 20 de julho de 2003, no Playcenter, foi o primeiro local que a gente se encontrou, o primeiro beijo que a gente deu foi na Estação Barra Funda, que a gente combinou de se encontrar lá, eu vindo de Suzano, ela vindo de Barueri, aí se encontramos lá e foi o primeiro beijo que a gente deu foi na Estação Barra Funda e a gente passou o dia inteiro no Playcenter. Na semana seguinte, era quase agosto, foi na casa dela, aí fui o mês de agosto inteiro na casa dela, pra depois, só em setembro, pra ela ir na minha casa mesmo. Então foi assim que sucedeu. P/1 – Entre vocês se conhecerem ali direito, no ponto de ônibus, e se encontrar o Playcenter, quanto tempo vocês ficaram trocando cartas? R – Um ano e meio.

P/1 – É mesmo? Nunca se viram, por telefone? R – Não, foi assim, a gente só tinha se visto essa primeira vez, depois foi só ligação e carta, ligação e carta... P/1 – Devem ser cartas lindas... R - ... E aí a segunda vez foi só pra se beijar mesmo. P/1 – Devem ser cartas lindas. R – Bastante. A gente está organizando e a intenção é que quando a gente for casar, o convite seja o próprio livro das cartas, que a gente faça um livro com as cartas e tal. P/1 – Legal. E a sua carreira como escritor, como que ela começa? R – Então... P/1 – Quando, como...? Por que? (risos) Mudando, né, um pouquinho de assunto. R – De tudo isso que a gente contou, de toda explanação que a gente conversou aqui agora, o momento mais importante da minha vida, que fez eu ser quem eu sou hoje, foi o momento que eu entrei na literatura. Em 2000, 1998, quando eu mudei pra cidade de Suzano e continuei trabalhando como cobrador de lotação, nesse ínterim de tempo, eu ainda dei um trampo de seis meses como empacotador de supermercado, num supermercado em Suzano.

E aí quando eu vi que aquilo não era a minha cara, eu acabei voltando a trabalhar como cobrador de lotação. Então, eu pegava o trem todos os dias às quatro horas da manhã, que saía de Suzano e ia pra Itaquera, hoje existe uma baldeação na estação de Guaianazes, que a gente pega aquele trem espanhol, aquele trem azul, então antes não existia, então o trem ia parando nas estações e não tinha baldeação e linha direta pra Itaquera, então gastava-se 45 minutos. Aí chegou um certo momento, quando eu entrava no trem lá em Suzano, que era um marasmo total. E no trem de manhã, ou você cochila, ou você fala de novela, ou fala de futebol, ou joga baralho. Como a partir do momento que eu acordo e tomo um banho, já não consigo mais dormir, então não conseguia cochilar no trem, não sabia jogar baralho, não gostava de futebol e também não assistia novela, então o que que eu ia fazendo no trem?

Alguma coisa eu tinha que fazer. E ai passou um ano mais ou menos, de 1998 pra 1999, eu comecei a ler no trem só pra passar o tempo. Veja bem, eu tinha saído da escola sem gostar de ler, sem gostar de escrever, apesar de eu ter feito umas boas redações, eu sempre tirava nota boa em redação, eu nunca gostei de escrever, eu nunca gostei de ler até os 18 anos de idade. E aí eu falei: “Bom, pra passar o tempo, eu vou pegar uns livros”. Comecei a pedir uns livros emprestados do meu tio, esse que é padre, né, que hoje é padre, que ele tinha muita influência em escola, diretor de grêmio estudantil, coordenador de sala de aula, então ele recebia muitos livros de presente, caixas de livro fechadas e tudo mais, e como muitos livros ele já tinha lido, ele deixava embaixo da cama dele. Por ele estar estudando para ser padre, ele era o único na casa da minha avó, quando eu morava com ela, que tinha um quarto só pra ele. E aí como eu não queria pedir livros emprestados na biblioteca, porque você tinha sete dias pra entregar, tinha que levar duas fotos, ir com um maior responsável, tudo mais, era uma burocracia total, eu falei: “Ah, eu nem gostar de ler eu gosto, eu vou ler por passatempo, acho que não vou conseguir ler um livro em sete dias”.

Aí eu pedi um livro emprestado pro meu tio. Ele falou assim: “Não, você nem gostar de ler, você gosta. Pra que? Você vai usar o livro pra sentar no chão do trem quando o trem lota”, que é isso que o pessoal faz, né? Aí eu falei: “Ah, então deixa estar”. Aí ele saiu pra tomar banho, deixou a porta do quarto aberta, eu entrei e peguei um livro, falei: “Vou ler, depois eu devolvo”. P/1 – Que livro era? R – Era um livro da Editora Ática, Coleção Vagalume, Meu pé de laranja lima. Eu peguei esse livro, li, gostei, passando o tempo no trem, então eu tinha 45 minutos ida e 45 minutos de volta. Falei: “Eu não vou devolver esse livro”, peguei pra mim. E aí fui pegando outros livros, fui pegando. É por isso que eu digo hoje que o Brasil só vai melhorar, ou pelo menos algumas pessoas do Brasil só vão melhorar se passarem a roubar livros, né (risos), porque o livro mesmo salva as pessoas. Ele me salvou e continua me salvando até hoje.

P/1 – Por que você quis ficar com esse livro do Meu pé de laranja lima? R – Porque eu sabia que o meu tio ele iria pro convento depois, que ele ia ficar numa igreja e tudo mais. Aí eu falei: “Bom, depois ele vai querer doar esses livros pra qualquer lugar, então eu vou pegar alguns livros pra mim, né, pra poder começar a montar a minha biblioteca também”. E também porque eu gostei do livro e queria que outras pessoas também gostassem do livro como eu gostei. Eu falei: “Bom, vai ficar comigo, que eu posso emprestar também esse livro”. Então comecei a surrupiar, pegar alguns livros, comecei a desviar alguns livros e foi ficando pra mim. Até, ele não sabia até o momento que eu gravei uma entrevista pro programa do Jô, ele assistiu a edição e ficou sabendo: “Ah, então os livros que sumiram era você que estava surrupiando lá, né?” Então, em momento nenhum ele ficou sabendo. O mais interessante é que foi o seguinte, eu comecei a ler no trem apenar pra passar o tempo.

Chegou um certo momento, que quando o trem estacionava na estação de Itaquera e eu tinha que descer, eu ficava rezando pra não ser verdade, que tivesse mais uma estação, ou que o trem demorasse com as portas fechadas pra eu continuar lendo, pra eu ler mais uma página ou mais um capítulo. Então eu estava gostando de ler, então às vezes eu descia a escada rolante ali lendo o livro, tava indo trabalhar ali, encontrar com o meu patrão e ia lendo, às vezes capotava, porque estava fascinado. E aí chegou um certo momento, acreditem se quiser, quando eu ia entrar no trem, eu rezava pra acontecer duas coisas: primeiro pra encontrar um amigo, segundo pra não encontrar um amigo. Por que? Se eu encontrasse um amigo, ele ia ver que eu estava lendo, ia ver que eu estava me dedicando à leitura, e aquilo pra mim era fantástico, alguém saber que eu estava lendo, que eu estava gostando, aquilo pra mim era um status, né, era um status diferente, né? E rezava também pra não encontrar nenhum amigo, nenhum conhecido pra eu conseguir ler no trem, ir lendo, sempre que você encontra um conhecido, eu ia ter que conversar, aí não podia ler meu livro ali. Então, imagina o Sacolinha, né, 18, 19 anos de idade com um livro debaixo do braço, assim, estufando o peito e entrando no trem, assim. Eu me sentia o cara mais poderoso com o livro na mão, sabe? E de fato eu sou um cara poderoso quando eu estou com um livro na mão, contanto que eu sou o que sou por conta dele.

E aí, foi um momento que eu passei da leitura para a escrita, então, ao invés de consumir só o livro, eu comecei a ser o produtor. Por que? Eu comecei a ler bastante, bastante, bastante mesmo, minha avó e minha mãe falavam que eu ia ficar louco de tanto ler, e de fato eu concordo, porque as pessoas que leem bastante ficam loucas, ficam loucas se não colocarem o papel o que pensam, se não conversarem, se não dividirem com os amigos, se não jogarem bola, se não forem ao cinema, acabam ficando loucas também. Então eu comecei a colocar no papel algumas coisas que eu via, que eu vivia, eu estava passando por um momento muito ruim na minha vida pelo seguinte, eu morava ainda com a minha avó, a minha mãe morava em Guaianazes com os meus dois irmãos por parte de mãe, junto com o meu padrasto. E aí o meu padrasto saiu pra trabalhar numa sexta-feira e desapareceu, até hoje a gente não sabe o que aconteceu. Então a gente foi, saiu à procura, vasculhou São Paulo de cima a baixo, a gente acabou não tendo nenhuma notícia dele. Minha mãe, com medo, ela morava em Guaianazes, no Jardim Moreno, ela foi morar então na cidade de Suzano, ela comprou um terreno e enquanto estava sendo construído, ela estava morando de aluguel.

Então eu passei a ser o chefe da casa, morar um pouco com a minha mãe, então eu estava passando esse momento de, poxa, ganhar 15 reais por dia, trabalhando como cobrador de lotação, não era nem registrado ainda, com dois irmãos, que tinha 12, 13 anos, minha mãe com 39 anos de idade não estava mais conseguindo arrumar emprego e eu todos os dias ia para estação de trem, eu não ia de ônibus, eu ia de bicicleta. Chegava na estação, amarrava minha bicicleta em algum poste ali e ia trabalhar, porque esse dinheiro que eu economizava da condução dava pra comprar um arroz e um feijão pra casa. Então eu estava passando por esse momento, que o Tim Maia costumava cantar: (canta)“Se o mundo inteiro me pudesse ouvir/Tenho muito pra contar...”, então, assim, eu tinha alguma coisa pra contar, eu queria dizer que tudo estava errado, que a gente não podia passar por uma situação daquela. E aí eu estava pra explodir mesmo, de fato, e eu estava pra explodir pra um dos dois lados, que eu costumo dizer, um é o lado da pólvora e o outro é o lado do açúcar.

O lado da pólvora é o lado do crime, das drogas, da violência e o lado do açúcar é o lado da cidadania, é o lado da cultura, enfim, acabei optando pelo lado da cidadania, né, pelo lado do açúcar, que eu voltei um pouco para a cultura, mas que, infelizmente, costuma ser um pouco amargo, porque trabalhar com cultura no Brasil é uma coisa difícil, mas, graças a Deus, eu optei por esse lado. E aí comecei a escrever, primeiro porque eu ia explodir com tanta coisa na cabeça, segundo porque eu não queria fiar doido, terceiro porque muitas coisas que eu estava vivendo ali, de uma certa forma eu queria colocar no papel. Eu comecei a colocar no papel, eu nem sabia o que eu estava fazendo, se era frase, se era poesia, se era conto, crônica, e até que eu comecei a escrever umas letras de rap e passar pra alguns amigos meus que cantavam rap. E aí a gente levava pra uma rádio comunitária que tinha em Suzano, a Comunidade FM, 103.5, e o pessoal costumava cantar essas letras de rap, eu costumava ler algumas coisas que eu falava que era poesia e o pessoal ligava na rádio e elogiava: “Poxa vida, legal, bacana, eu queria dizer isso aí, eu passei por isso que você passou”.

Aí eu falei: “Opa, esse negócio é legal”. Além de eu me aliviar, o pessoal ainda liga, aplaudindo, eu falei: “Legal, vou continuar com isso”. E foi aí que eu comecei a participar de algumas palestras, de alguns escritores, conversar com outros professores de igual pra igual, aí foi quando eu comecei a ter um embasamento literário, então eu percebi que gostava mais de escrever prosa, no lado da crônica, no lado do conto, e aí foi quando, em 2003, eu peguei o trem de manhã, ainda pra trabalhar de cobrador de lotação, encontrei um amigo e conversando com ele até chegar na estação de Itaquera, ele começou a falar de um amigo de infância que estudou com a gente e que estava no tráfico. Aí ele falando desse amigo, eu tive a idéia de escrever um conto intitulado “Graduado em marginalidade”. Só que como eu não tinha feito roteiro nenhum desse conto, eu fui escrevendo o conto, foi tomando tantas proporções, que acabou virando um romance. Saiu um livro de 167 páginas, né?

Eu terminei esse livro, então, em 2004 e fiquei de 2004, mais ou menos julho de 2004, até agosto de 2005 procurando editoras. E aí foi quando eu percebi que as editoras não iam publicar um autor que não era conhecido, porque não ia dar dinheiro tão rápido assim, eu comecei a passar por debaixo da catraca do ônibus, comecei a fazer rifa, churrasco, pra arrecadar dinheiro em prol do livro. Foi quando eu lancei independente, né, terceirizei o livro, paguei as duas primeiras parcelas, fiz 500 exemplares do romance Graduado em Marginalidade e lancei o livro e saí vendendo por aí. Nessa época tinha criado uma associação chamada Associação Cultural Literatura no Brasil, que hoje é uma entidade registrada em cartório, que tem projetos, inclusive com o governo federal, com a Petrobras, e a gente acabou fazendo esse projeto, dessa associação por dois motivos, né, primeiro para incentivar a leitura, segundo para divulgar os escritores independentes, né, então foi criado um pouco por conta da minha dificuldade. E aí eu criei, fiquei uns dois anos sozinho com esse projeto, com essa associação, até que mais pra frente se uniram outras pessoas também, pra gente acabar divulgando e incentivando a leitura também.

E aí nesse ínterim de tempo, enquanto eu saía de Suzano e vim até aqui a Vila Madalena, Pinheiros, pra ficar vendendo o livro de madrugada, né, que eu tinha lançado 500 livros, aí todo dia que eu chegava em casa eu via aquele munduera, aquelas caixas de livros lá, esperando pra serem vendidos. Não conseguia colocar nas livrarias, porque tinha que ter nota fiscal, tinha que ser pessoa jurídica, tudo mais, e falei: “Poxa vida, tenho que vender esses livros, porque tem que pagar as dívidas e preciso que o livro chegue nas pessoas”. E foi aí que eu comecei a participar de vários eventos culturais, de vender o livro e divulgar, ir em palestra de escritores e enquanto o pessoal estava na fila pra pegar o autógrafo do escritor, eu estava na fila pra doar um livro meu pra ele, pra divulgar e pedir que ele lesse o livro depois, pra que me desse uma força também.

Enquanto isso eu estava escrevendo um livro de contos, intitulado 85 letras e um disparo, que aí esse livro foi lançado em 2006, também edição independente, só que como eu estava já com meio caminho andado, e acabei publicando mil exemplares por uma editora de Suzano, que eu terceirizei o livro, só que essa editora, chamada Editora Ilustre, acabou dando um viés a mais, ela trabalha muito com autores independentes, então ela acabou colocando em algumas livrarias, tudo mais. E aí, nessas idas e vindas, cheguei a conhecer muitas pessoas, de projetos sociais, de canais de televisão, acabei aparecendo em alguns veículos de comunicação, algumas revistas, jornais impressos, na TV também e aí foi quando surgiu o convite pra sair pela Global Editora, que é uma editora bem grande, conhecida no Brasil inteiro e tudo mais.

Aí foi quando ela lançou a segunda edição do livro 85 letras e um disparo. Aí, vejam bem vocês, eu comecei a escrever em 2002, antes eu só lia, mais ou menos comecei a ler em 98, pra 2000, 2001, comecei, só estava lendo nessa época, depois que eu comecei a escrever, que eu me envolvi com o movimento hip hop, o movimento negro, vários movimentos relacionados à área da cultura, e a área da cultura social. Até aí eu era apenas o Sacolinha, cobrador de lotação, e que uma hora ou outra tinha três reais no bolso, não sabia conversar direito, eu tinha muita vergonha de fazer as coisas, e que metia o pau nos políticos, metia o pau no panorama geral social do Brasil, mas não dava solução. Quando eu comecei a escrever, de 2002, até o presente momento, 2008, hoje eu sou o Sacolinha, que tenho orgulho de bater no peito e dizer que é o que é graças aos livros, que se não fosse eles, eu estaria, no mínimo, a sete palmos abaixo da terra. Então, se hoje eu tenho um carro, graças à literatura, se hoje eu estou fazendo uma faculdade, graças à literatura.

Hoje eu estou trabalhando numa Secretaria de Cultura de uma cidade de São Paulo, graças à literatura, hoje eu tenho amigos maravilhosos, hoje eu tenho uma noiva maravilhosa, hoje eu tenho uma casa que eu construí, graças à literatura. Então, eu tento passar hoje para as pessoas o que a literatura fez na minha vida, não qe eu quero incentivar que todos sejam escritores, mas só pelo fato das pessoas acordarem para a questão da leitura, que ela lendo, ela pode ser tudo, está ótimo, aí é quando eu chego e digo assim: “Shakespeare disse ‘ser ou não ser’, eu digo ‘ler ou não ser’, se você lê, você é, se você não lê, você não é nada”. Então, quem não lê hoje em dia não rende mais nada, no mínimo tem que ler um jornal. Eu gosto de incentivar as pessoas, e não importa o que a pessoa está lendo, importa que ela está lendo. Então, não importa que ela está lendo auto-ajuda, Júlia, Bianca, Sabrina, esses livrinhos que não contribuem em nada, importa que ela está lendo. E depois que ela tiver lido bastante, é que sim ela vai saber o que de fato ela quer para a vida dela, que tipo de livro que ela quer ler, né? Então, um pouco da minha vida antes da literatura e depois da literatura.

P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, você falou de alguns estilos, né, crônica, conto... Como você foi aprendendo essas diferenças? Porque uma coisa é a gente querer escrever, outra coisa é a gente ter um pouco de técnica. Como é que você foi absorvendo essa técnica também? R – Foi quando, justo na época que eu comecei a encher o saco dos professores, dos escritores e eu encontrei alguns que falavam assim: “Poxa, é legal, você um talento, tem criatividade, mas você precisa lapidar isso, você precisa de uma técnica e tal”. Eu falei: “Poxa, mas que diacho de técnica?” E eu sempre respeitei as pessoas mais velhas, eu sempre respeitei as pessoas que tem mais conhecimento, então, se eu fosse uma outra pessoa, eu poderia falar: “Que nada, está com inveja... Está com preconceito da minha literatura e tudo mais”, mais aí eu falei: “Poxa, legal, né, eu vou absorver isso que eles estão dizendo, o que for bom, fica comigo, o que for ruim, eu jogo fora”. E aí eu ouvi muito eles falarem de livros clássicos, né, da literatura clássica e tudo mais, que pra mim sempre foi uma literatura chata. Então falavam do Jorge Amado, de Machado de Assis, livros que eu tentei ler e nunca conseguia. E aí, até que chegaram algumas pessoas que falaram assim: “Você precisa ler. Você não precisa fazer uma faculdade pra ser escritor, né, você não tem que ter dinheiro pra ser escritor.

Mas você lendo, você indo atrás dessas pessoas, você vai aprender como se escreve”. Aí eu falei: “Vamos ver como é esse diacho aí. Vamos correr atrás desse negócio aí”. Aí eu comecei a ler com muita calma Machado de Assis, o próprio Jorge Amado, e aí foi quando eu busquei várias literaturas, vários tipos, porque antes, nessa época que eu comecei a compor, eu lia muito Paulo Lins, eu lia muito Ferréz, eu lia muito Jocemir, então era livro Cidade de Deus, Diário de um detento, Capão Pecado. Era assim, era um tipo de literatura que eu lia, que acrescentava bastante coisa pra minha vida. Só que eu tinha que ler mais. Eu tinha que buscar na fonte, que era onde esses escritores, Ferréz, Paulo Lins, Jocemir buscaram também. Então, eu falei: “Vou buscar nessa fonte também”. Foi aí que eu comecei a dar valor pra esses livros clássicos, que eu falava: “Poxa, eles são clássicos, chatos, porque foram escritos numa outra época, e, assim, nunca terminou de dizer o que tinha pra dizer”, então você lê hoje, ele é atual. Eu falei: “Olha que coisa fantástica. Eu quero que uma pessoa daqui a 60, 70 anos também leia o meu livro e fale ‘nossa, mas esse tal de Sacolinha foi fogo, eu quero escrever como ele’”.

Então eu falei: “Legal”, e comecei a sugar da fonte mesmo, comecei a ver como eles construíam os personagens, o tempo, o espaço... E foi aí que eu percebi que o meu grande dom mesmo era voltado para a prosa, para a questão do romance, pro conto, que para a poesia eu era muito devagar, não que eu não escreva, eu escrevo algumas poesias também, então, foi aí que eu percebi: “Ah, legal, tem que se identificar”. Tanto que o conto tem mais mercado literário pra isso, né, as pessoas lêem pouco poesia, porque acham que não entendem, porque é difícil; uma literatura mais fácil de ser digerida também, mas não que o conto seja fácil de ser digerido, o conto por vezes é mais complexo que uma poesia, mas, por eu ser essa pessoa, desde a infância, que sempre gostei de calor humano, sempre gostei de estar no meio das pessoas, de brincar e tal, eu acho que o conto é mais isso, o conto é mais o carnaval, o conto é mais essa coisa do calor humano, agora a poesia é uma coisa mais solitária, mais subjetiva, então por isso eu acabei voltando um pouco para a questão do conto.

P/1 – Quem foram, ou quem foi, as pessoas que te incentivaram na carreira como escritor? Que te orientaram, que te ajudaram... R – Por incrível que pareça, a pessoa que mais me incentivou foi a saudosa Carolina Maria de Jesus, falecida na década de 70, que ela escreveu um livro chamado Quarto de despejos, subtítulo Diário de uma favelada. Quando eu li esse livro, eu pensei: “Nossa, foi uma favelada que escreveu isso? Não, vou ler de novo”. E li uma segunda vez. E era um livro, inclusive que eu só achei na biblioteca do município, mas eu sempre tratei o livro com bastante carinho, mas esse livro eu não consegui tratar com bastante carinho, então, lendo, eu sempre pegava o lápis e começava a circular, porque a autora falava umas frases bacanas ali, e tudo mais, algumas frases que me deixavam muito mal, sabe, eu ficava refletindo muito sobre a minha vida, eu li uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes. Em sete dias, eu li ele seis vezes, porque como era um diário, então era fácil de você ler.

E aí quando eu terminei de ler esse livro, eu falei: “Eu vou ser escritor, igual a essa escritora”. Aí comecei a pesquisar sobre a vida dela, eu falei: “Nossa, eu quero ser um Sacolinha, escrever um livro também que venha da periferia, que venho do subúrbio e que seja conhecido no mundo inteiro, como a Carolina Maria de Jesus foi conhecida no mundo inteiro, traduzida em mais de 24 idiomas”. E aí, por ela ser negra, por ela ser favelada, por ela vir de Minas Gerais, trabalhar como empregada doméstica, depois catar lixo, através do lixo, ela adquiriu sua cultura, porque ela não teve muitos anos de estudo, ela só teve dois anos de estudo, e ter sido o que foi, eu falei: “Nossa, eu também quero ser assim”. Foi aí que eu comecei a compor, foi aí que eu pensei que era possível mesmo, então, a partir daí, todas as pessoas que me circulavam, que estavam ao meu redor, todas essas pessoas acabaram me influenciando muito. Então eu não posso dizer que o Machado de Assis me inspirou, sendo que uma vizinha minha pode muito bem ter me inspirado. A partir do momento que eu abro a janela de casa e estou ouvindo ela escutar forró domingo e cantando toda feliz, e aquela cena me inspirar a escrever um conto bem subjetivo, né?

Então todas as pessoas acabam inspirando também. Agora, escritores que eu gosto, pode colocar na lista Jorge Amado, pode colocar Machado de Assis, Carlos Drummond, a própria Carolina Maria de Jesus, alguns estrangeiros também, como o próprio Charles Bukowiski, que escrevia uma literatura totalmente fora dessa questão do formal, Manuel Bandeira, que escrevia umas poesias muito bacanas... Então, assim, pra mim tem vários escritores que acabam me influenciando também. P/1 – Legal. E a faculdade de Letras? Como que ela surgiu nesse contexto? R – Em 2005 foi quando eu comecei a trabalhar como coordenador literário na Secretaria de Cultura do Município de Suzano, foi aí que eu comecei a ter uma estrutura melhor financeira pra entrar numa universidade, né? E aí, quando eu pensei: “Poxa vida, eu estou escrevendo, tal, estou participando de vários movimentos sociais, só que eu não quero ser um mero militante e um mero artista, eu quero entrar na sala de aula e mostrar para os alunos que é possível também”.

Porque hoje em dia a educação está bem difícil, na sala de aula você vê professor gritando com aluno, aluno gritando com professor, então fica aquela coisa de animal e tal, e sempre fica aquela coisa do aluno sair da escola sem saber o que vai fazer com aquele diploma que não vale nada pra ele, se ele não tem um curso de informática, se ele não tem um curso de inglês, se ele não tem uma universidade, ou até uma pós graduação, porque cada vez que a gente vai se atualizando mais, aquele diploma acaba ficando pra trás, acaba não servindo. Então, eu falei: “Olha, eu vou fazer uma universidade, vou me graduar, vou me especializar, vou pra sala de aula, vou mostrar pra esses alunos que é possível sim”. E eu quero também ser uma pessoa que pode debater de igual pra igual, tanto na questão do talento, quanto nos termos acadêmicos também, porque não basta ter o talento, tem que ter a técnica, a gente precisa saber falar bem, a gente precisa falar bem, enfim, trabalhar com essa questão acadêmica aí. Por isso que acabou surgindo essa questão do curso de letras. Entrei apenas com a ideia de fazer uma graduação, agora já estou querendo fazer uma pós-graduação, uma especialização na área de literatura brasileira, que é o meu forte, não que eu não goste da literatura estrangeira, gosto sim, mas acho que antes da gente ir pra lá, a gente que valorizar o que é nosso, aqui. Então, sou muito voltado pra nossa cultura, pra questão do popular, da questão do brasileiro. Então é aí que surge a universidade em minha vida. P/1 – Além do mestrado, dessa coisa continuidade, quais são os seus outros planos pro futuro? Além de casar com o amor da sua vida.

R – Olha... (risos) Na área de especialização, acho que termina aí, nessa pós-graduação, mestrado, tudo mais, não sei. Mas o meu projeto mesmo na literatura, quero muito escrever pra teatro, quero muito escrever pro cinema, escrever pra TV, quero muito fazer novela... Porque, assim, eu sempre reclamei do que está aí, então quando eu comecei a ler e comecei a criticar política e dar sugestão, dar opiniões, eu faço a mesma coisa com o que está aí no cinema, com o que está aí no teatro, com o que está na TV. Então, se eu critico, eu tenho que mostrar como que eu quero que seja, como que pode ser feito, né? Se eu estou criticando, como seria, então, o padrão ideal? Como que eu queria, por exemplo, que a minha mãe, que a minha vizinha assistisse uma novela, se sentisse dentro da novela, mas não como assim: “Vou digerir pra passar o tempo, é a minha válvula de escape”. Não só isso, mas fazer com que a pessoa reflita também, tudo mais. Então, os meus projetos são escrever pra tudo quanto é lugar e, especificamente, viver de literatura. Eu quero muito bater no peito e dizer: “Olha, eu vivo de literatura”. Se bem que eu já estou vivendo de literatura, porque se eu trabalho numa secretaria de cultura, onde eu coordeno a área de literatura, e tudo que eu faço, as vendas de livros, as palestras, sempre sobra algum trocado, de uma certa forma, eu estou vivendo de literatura.

Não estou vivendo diretamente dos livros, mas através dos livros que eu escrevi e estou escrevendo, estão surgindo outras coisas que estão fazendo com que eu viva disso. P/1 – Sacolinha, você acha que ficou faltando falar alguma coisa? R – Olha, eu acho que ficou faltando bastante coisa, mas não tem como a gente falar, né, tudo isso, mas o que é mais importante, o que é mais essencial, foi falado já, foi finalizado. P/1 – Legal. Então, assim, pra finalizar, a última pergunta, prometo (risos). R – Pode ficar à vontade. P/1 – Que que você achou de ter passado esse tempo aqui com a gente, olhando o seu passado, sua infância, adolescência, ter deixado registrado a sua história toda aqui no Museu da Pessoa? R – Uma iniciativa muito bacana, quando eu fiquei sabendo desse projeto, Museu da Pessoa. Mais bacana ainda é saber que não vão ligar lá prum cara lá do Rio Grande do Sul, que é famoso: “Vamos pagar a passagem de avião dele, pra ele vir aqui e falar, é um medalhão e tal”. O mais bacana que eu achei é que qualquer um, qualquer cidadão, principalmente esse “qualquer cidadão” pode vir aqui e pode gravar o seu depoimento e é bem tratado, isso que é o muito bacana.

É diferente, às vezes, quando coce chega num local e aí você não é bem tratado, você só está ali porque, de repente, apareceu na televisão, você só está ali porque de fato é alguém, é muito diferente, então, a partir do momento que a gente vê e se vê e é bem tratado num lugar desse, eu acho que uma iniciativa dessa, o Museu da Pessoa está de parabéns, mostrar que não é um produto, não trata-se da pessoa como um produto, mas como um cidadão, que a pessoa pode ter sim o teu momento, a sua hora, pode aparecer onde você quiser, que é muito importante o cidadão comum olhar e falar assim: “Olha, entra lá na internet, no site tal tal tal tal, um negócio do Museu a Pessoa, e você vai ver um vídeo meu gravado lá”. Isso pra pessoa é fantástico. Ao invés de ela aparecer uma vez ou outra na TV, ou somente quando não Datena, ou qualquer um desses jornais sensacionalistas, fala: “Bota lá no VT a cara do vagabundo lá pra todo mundo ver”. É muito importante quando o cidadão não aparece assim, quando ele aparece de uma outra forma: “Olha, eu tenho cultura, eu tenho o que falar, entendeu?

Eu não sou ladrão, eu não sou bandido, onde eu moro não só tem isso, tem pessoas de bem também”. É muito bacana, o Museu da Pessoa está de parabéns. E aí, pra encerrar, eu só queria dizer o seguinte, que as pessoas, por mais que não tenham condições, que leia. Leia mesmo, porque só lendo você vai ser alguém. O exemplo está aí, eu acabei de falar que eu só sou o que sou graças aos livros. E que se não fossem eles, eu estaria, no mínimo, a sete palmos abaixo da terra. A literatura, os livros me salvaram, continuam me salvando e vão continuar salvando outras pessoas também, se depender de mim. Então, vamos ler, ta? Ler não é um bicho de sete cabeças. Pega um livro aí que você se identificar mais, não gostou, então para, procura outro, mas leia, porque: “Ler ou não ser, eis a questão”. P/1 – Maravilhoso. Então, em nome do Museu da Pessoa eu quero agradecer demais, Ademiro. R – Eu é que agradeço. Foi muito bom.

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